terça-feira, 17 de novembro de 2015

Uma história, nossa história.

Olá.

Eu me chamo Louis. Nasci em Florianópolis, em Fevereiro de 1982. Meu pai também é manézinho, mas minha mãe é francesa. Eles se conheceram quando meu pai foi fazer uma viagem na Europa e foi tomar café da manhã perto da Torre Eiffel. Meio atrapalhado com a língua, viu uma bela jovem vindo em sua direção para socorrê-lo. Ela ouviu o francês meio aportuguesado e com palavras inglesas no meio e sabia que só podia ser estrangeiro. Foi assim que Lucas conheceu Sophie, uma francesa que tinha ido para Portugal para estudar e tinha aprendido um pouco do português. Lucas ainda tinha um dia em Paris e Sophie foi sua guia. Em tão pouco tempo juntos, criaram uma grande amizade e prometeram mandar cartas um para o outro.

Cerca de dois anos se passaram e não se passava uma semana sem que um escrevesse para o outro. Passaram a se conhecer melhor e ansiar pelo próximo encontro. Por ocasião do destino, Sophie foi morar em Portugal para fazer o seu mestrado justo quando Lucas planejava sua próxima "Euro trip". Fazendo um esforço extra para adicionar uns dias em Portugal, conseguiram se encontrar. Do abraço de oi ao beijo de tchau, o destino foi selado ali. O tempo se passou e o destino atacou mais uma vez: foi oferecido a Sophie um emprego no Brasil, em São Paulo. Ainda uns mil quilômetros de distância, mas melhor do que ter que atravessar um oceano. Sabendo da notícia e confiante em seu coração, Lucas fez de tudo para se mudar para São Paulo também. Assim, assumiram oficialmente o namoro e começaram anos tensos pela frente. Cidade grande, complexa, demoraram a se acostumar, mas conseguiram. Tinham o sonho de voltar para suas cidades natais ainda assim, não conseguiam conceber a ideia de criar um filho naquela cidade. Se casaram e por fim decidiram: vamos morar em Florianópolis! Assim, voltaram para a cidade natal do Lucas, mesmo que contra a vontade de Sophie, que queria ir para a França.

Dois anos depois, a minha mãe ficou grávida e eu vim ao mundo. Para ela, foi uma grande alegria! Para o meu pai, uma preocupação. Houveram complicações na gravidez e minha mãe sofreu bastante, mas no fim, tudo deu certo e eu nasci! Tive uma infância boa, vivia na praia. Criado em Canasvieiras, passava os dias na areia e as noites observando as ondas sob o luar. Desde pequeno minha mãe já me ensinava o francês, falava que não ia admitir que eu fosse para Paris e cometesse o papelão que meu pai cometeu, a menos que fosse para achar uma francesa para mim. Com meus 11 anos de idade, minha mãe resolveu mudar para a França. a situação estava difícil em casa e meus avós convenceram meu pai a aceitar. Era agora que eu ia ver se as aulas da mãe tinham funcionado.

Matriculado na escola, chegou o primeiro dia de aula. Minha mãe me acompanhou, não quis deixar que meu pai fosse (só por precaução). Até que me saí bem, mas todos riam do meu sotaque e das minhas confusões. Afinal, minha mãe era uma boa professora, mas as outras crianças eram fluentes, e eu era um manézinho com pouca prática. Com o tempo, é claro, fui me soltando e ficou mais fácil a convivência. Conheci mais meus colegas e assim fomos crescendo e nos tornando amigos. A cidade me acolheu muito bem e logo já reconhecia Paris como meu segundo lar (minha mãe adorava quando eu falava isso).

Os anos passaram e fui crescendo. Com dezesseis anos, tive minha primeira namorada. Durou pouco mais de seis meses, mas foi muito bom. Em todo caso, ela não seria a mãe dos meus filhos. Essa só surgiria mais tarde na história. Segui minha caminhada no colégio e tive que decidir pelo meu futuro profissional. Fascinado pelos marcos da cidade, pensava que arquitetura poderia ser um bom caminho. Porém, também tinha uma paixão pelas artes e pensava se design não poderia ser uma saída. Acabei optando pela primeira opção e assim comecei os estudos.

Entre aulas e noites viradas, saídas de campo e aulas de urbanismo nas avenidas de Paris, conclui minha graduação. Conheci pessoas incríveis que viriam a ser grandes arquitetos, engenheiros, advogados, administradores (sim, muitos mudaram de curso depois). Muitas amizades que levaria para o meu futuro. Mas o mais importante foi a engenheira que conheci: Claire. Pois é, começou como uma colega da arquitetura, mas depois de dois semestres ela preferiu mudar de curso e seguiu o rumo do coração dela. E eu, segui o rumo do meu coração: me mantive na arquitetura e me mantive próximo dela. Depois de alguns anos de amizade e de relacionamentos desastrosos de ambos, resolvemos nos dar uma chance. A minha melhor amiga se tornou o meu amor. Encontrei a minha francesa.

Assim, começou a nossa história. Passamos do singular para o plural. Começamos a namorar perto do final da minha faculdade. A dela ainda demoraria um pouco mais pela transferência. Aos poucos, fomos nos abrindo cada vez mais e entendendo a nossa vocação. Viajamos juntos, fomos visitar minha família de Florianópolis, apresentei um pouco do Brasil para ela. Claire se apaixonou pelas praias e imaginou toda a história da minha infância. Meio encabulada por não saber muito do português, se enrolava ao conversar com meus avós, mas como eles eram pacientes, tudo deu certo. Ela falava do quanto seria bom pros nossos filhos conhecerem seus bisas e do quanto eles gostariam da praia.

Voltamos para Paris e a história dos dois chegava perto de aumentar. Depois dela se formar, resolvi pedir em casamento. De um jeito simples, mas romântico, pedi a mão dela com a ajuda dos meus sogros. Emocionada, aceitou! Tão rápido noivamos, tão rápido casamos. O sonho de ter nossos filhos aumentou. Após um ano de preparo, tanto financeiro quanto psicológico, começamos a tentar. Depois de ansiosos meses, veio a tão esperada notícia: Claire estava grávida. Repetindo-se a história, também houveram complicações durante a gestação, mas que viriam a se superadas com aquele primeiro choro. Assim, nasceu Pierre. Do nosso amor, surgiu este novo ser. Como era de se esperar, nossos dias passaram a ser de alegrias e tristezas, noites mal dormidas e puro companheirismo. Ele até que era uma criança tranquila, mas não parecia gostar que dormíssemos perto das três horas da madrugada, sempre acordava e chorava. Meus pais ajudaram bastante nessa fase. No início, não queríamos sair do lado do Pierre. Com o passar dos meses que conseguimos deixar ele com os avós sem problemas.

Sendo assim, resolvemos sair para aproveitar como casal depois de um tempo em casa. Deixamos o Pierre com meus pais e, com um outro casal de amigos, fomos ao Le Bataclan. Não sabíamos o que ia rolar lá, mas nossos amigos estavam querendo ir e acompanhamos eles. E assim, nos aproximamos do fim das nossas histórias. No meio do show, ouvimos um estouro. Parecia um efeito da banda, mas quando ouvimos pela segunda vez, vimos três homens com suas metralhadoras e pessoas no chão. O desespero tomou conta de todos que tentavam se salvar. Não foi o que aconteceu comigo e com a minha esposa. Entre correrias e tiros, fomos os escolhidos da vez. Em poucos instantes, tudo se passou por nossos olhos: a infância em Florianópolis, a mudança de cidade, a faculdade, o casamento, o nascimento do Pierre... os sonhos da Claire de levar ele para conhecer os bisas de Floripa, ou de levar ele na praia e ver ele curtindo o mar. Tudo isso se foi num disparar de uma bala. E a minha história que começou em Fevereiro de 1982, terminava ali, em novembro de 2015.

A história de meus pais e do Pierre se encontravam em outro momento. A dele, recém começava ou recomeçava. Tudo que um dia poderia ser já não poderia mais. Teria que ser criado pelos avós ou por quem o recebesse. Quanto aos meus pais, bom, uma parte da vida deles acabara ali. Depois de 33 anos me criando, me acompanhando e me dando as melhores condições possíveis, voltaram a ser um casal sozinho. Tinham o Pierre, mas um vazio ainda os preenchia. A história deles podia terminar ali também, mas com a força de uma criança, superaram a dor e fizeram de tudo para que o neto fosse uma ótima pessoa e, assim, voltariam a ter a alegria na vida.

Pois é, a minha vida acabou ali, sabe-se lá o porquê. 33 anos se esvaindo num segundo. Pode parecer pouco quando tu pensa que existem outras bilhões de vidas, mas não, uma vida nunca é pouco a partir do momento em que passa por tantas outras. Hoje, meus colegas da escola estão de luto, minha família está de luto, meus colegas da faculdade estão de luto, todos aqueles que eu passei pela vida e que me conheceram um pouco que seja, estão de luto. Hoje, meu filho está de luto, sem nem saber o que é. Uma decisão de um segundo é seguida por uma culpa de 33 anos.




Bom, agora quem fala é o Pedro mesmo. Primeiramente, queria deixar claro que essa história toda foi criada, não conheço nenhum Louis, Sophie, Pierre, etc. Sabe, muita gente pode ler isso e já vir criticando perguntando "ahh, e por que tu não escreveu sobre Mariana?" ou sei lá sobre qual outra tragédia. Se alguém vir me perguntar isso, de nada serviu a minha postagem. Não importa se foi em Paris que se passou a história, não importa se foi em Mariana, não importa se foi em Dakota do Norte. O que importa é o valor de uma vida, a singularidade que cada ser carrega em si. Poderia sim escrever uma história em que o Louis saísse de Mariana para seguir seus sonhos e perdesse os pais no dia seguinte ou até, como citei ali em cima, falar de Dakota do Norte, local para onde o meu irmão foi e onde ele sofreu o acidente que o levou a morte. Mas não, a minha intenção não é levar em conta nenhum caso específico, mas falar de um contexto geral mesmo. A pressa de chegar no trabalho acabou com uma história de 21 anos e 11 meses. Um tiro acabou com uma história de 33 anos. Um desastre natural acabou com uma história de 5 anos, uma história de 43 anos, uma história de 87 anos. A reflexão fica na consciência de cada um. Cada um tem sua história. O quanto tu gostarias que a tua fosse jogada no lixo assim? Essa semana, li muitas pessoas falando que o mundo está se acabando, não só Paris ou Mariana. É, concordo com essas pessoas. Mas não quer dizer que eu não ache isso ruim e não possa pensar sobre. Fica aqui a minha reflexão quanto a isso. Nunca se sabe qual vai ser a próxima história. 

Um grande abraço,
Pedro Meyer.